Sobre ´Vigiar e Punir', Foucault (2008)
O livro ‘Vigiar e Punir’ (‘Surveiller
et punir‘) foi escrito pelo filósofo francês Michel Foucault (1926–84) e
publicado em
Foucault
é um pensador epistemológico, pois procura, não só neste livro, mas em toda a
sua obra, descobrir, estudar a formação, o desenvolvimento dos saberes sobre o
Homem. Saberes estes, que tem como função última controlar, normalizar a sociedade
para melhor controlá-la, ou seja, para mantê-la em pleno funcionamento. Foucault
faz uma história da formação (em um período de longa duração) de um saber, que
cresce e se transforma em busca da melhor forma, da maneira mais eficaz de
controlar a sociedade até ao mais simples indivíduo. Podemos ver, ao longo da
obra, que este poder, criador de um saber, de um saber que, por sua vez, cria uma
individualidade do indivíduo dentro da sociedade, para, desta forma, melhor
entendê-lo, vigiá-lo e controlá-lo não é exercido por um único sujeito ou uma
única instituição; é, na verdade, exercido por todos, sobre todos e sobre si
mesmos. É uma micro-física do poder que vai se aprimorando ao passar do tempo e
se espalha por toda malha social.
A obra esta dividida em quatro partes:
A primeira parte,
denominada Suplício, por sua vez, está dividida em dois capítulos. Sendo o
primeiro O corpo dos Condenados e o segundo A ostentação dos Suplícios.
A segunda parte,
denominada Punição, também esta dividida em dois capítulos. O primeiro possui o
título A Punição Generalizada e o segundo A Mitigação da Penas. A terceira
parte, denominada Disciplina esta dividida em três capítulos. O primeiro tem
por título Os Corpos Dóceis, o segundo Os Recursos Para o Bom Adestramento e o
terceiro O Panoptismo.
A quarta e
última parte, denominada Prisão, está dividida em três capítulos. Sendo o
primeiro denominado Instituições Completas e Austeras, o segundo Ilegalidade e
Delinqüência e o terceiro O Carcerário. E ao final de cada parte estão as notas
de rodapé.
Na primeira parte do livro, Suplício, o autor, Michel Foucault, nos fala,
como o próprio título já diz, sobre o ritual dos suplícios. Ritual este em que
as execuções eram tidas como um espetáculo, onde o soberano se vingava do
criminoso que, ao cometer um crime, atacara não a sociedade, mas a própria
pessoa do soberano. E este queria, como forma de exemplo a futuros crimes,
mostrar todo o seu poder vingativo. Como nos diz Foucault, é a justa do
soberano.
Mas, é claro,
não devemos pensar que os suplícios eram a única forma de punição deste período
(entre o século XVI e XVII). Existiam outras penas como, por exemplo, o banimento,
o açoite, confissões públicas dos crimes, prisão, as galeras entre muitas
outras. Os suplícios eram utilizados para determinados tipos de crimes, os mais
graves onde, como vimos, o soberano sentia sua imagem atacada.
Os rituais de suplício deveriam servir de
exemplo para impedir que determinados crimes voltassem a acontecer. Eram
organizados opulentos espetáculos e estes continham, entre outras coisas, a
confissão e leitura das penas e dos crimes em público, acompanhadas de pedidos
de perdão e de discursos aconselhando todos a não cometerem mais este tipo de
crime. Lógico que, como nos diz Foucault, estes pedidos de perdão e confissões
eram previamente obrigados pelos magistrados. Quanto mais cruel tivesse sido o
ato criminoso maior seria a tortura (o suplício, o espetáculo) e a execução.
Foram criadas diversas formas de torturas e de execução, desde a morte lenta à
morte rápida (todas minuciosamente preparadas e executadas). É importante
lembrar que muitas vezes o crime era relembrado na hora dos suplícios, ou seja,
faziam, os carrascos, os executores, muitas vezes, com que os criminosos
sentissem dobrado o crime que tinham cometido.
Estes
espetáculos supliciais tinham como objetivo, além de impedir que determinados
crimes fossem novamente cometidos, criar uma reação de fúria, de desprezo, de
ódio contra o criminoso, por parte da população.
Podemos
ver, então, que os suplícios destinavam-se mais à população do que aos próprios
criminosos, pois o objetivo era reafirmar o poder do soberano, em sua justa, em
sua vingança, impedindo, desta forma, a ocorrência de novos crimes.
Como nos diz
Foucault, o soberano, neste período, tinha o poder de “fazer morrer e deixar
viver”, ou seja, tinha o poder de ordenar à morte quem achasse que merecesse ou
de impedir execuções já aprovadas, exigidas pelos magistrados ou pela população.
O que foi gerando um descontentamento por parte dos magistrados, que sentiam seu
poder judiciário fraco perante a arbitrariedade do poder soberano do rei.
As leis estavam
abaixo do poder soberano do rei. Condenavam, os legisladores e magistrados, a
arbitrariedade do poder soberano que os ultrapassava. Mas, como diz Foucault, o
poder dos magistrados também era arbitrário. Existiam formas secretas (os
magistrados faziam os interrogatórios secretamente utilizando diversas formas
para obter as respostas necessárias, esperadas, procuradas e só depois
anunciavam a sentença) de obter confissões, de inocentar ou culpar determinado
indivíduo. Eram utilizadas diversas formas de tortura e interrogatório.
Aos
poucos foi percebido que estes suplícios, estes grandes espetáculos estavam
gerando um efeito oposto ao esperado. Ao invés de o criminoso ser odiado,
desprezado pela população, este passou a ser, muitas vezes, enaltecido por seus
grandes feitos (feitos criminosos), por sua esperteza em driblar as leis e etc.
Surgiram, neste
período, diversos panfletos contendo histórias que exaltavam os famosos
bandidos e seus feitos, panfletos que antes continham as confissões, os pedidos
de perdão e as súplicas do condenado.
Como nos diz
Foucault, não devemos pensar que a população era passiva às decisões do rei ou
dos magistrados quanto às condenações, torturas ou prisões.
O povo (se é que
podemos utilizar essa expressão para um período antes do século XVIII)
manifestava contra penas, prisões a que não concordava ou contra a leveza dos
magistrados perante certos crimes (ou criticava a falta de punição a
determinado crime ou indivíduo) [1].
Isso exemplifica também a diferença entre as classes, onde os mais pobres eram
facilmente condenados enquanto os mais ricos escapavam às leis e às punições,
destinadas às massas. Os grandiosos, silenciosos e sábios crimes passaram a
fazer parte de um “jogo” das classes mais abastadas (o exemplo citado, na nota
de rodapé número 1, também serve para exemplificar este ponto, pois o senhor
que mandou matar o pastor não foi punido).
Nesta primeira parte, Foucault faz uma análise sobre como se dava a
punição, sobre quem detinha o poder e sobre como funcionava este processo de
punição, espetáculo, justa/ vingança do rei que se sentia pessoalmente ofendido
pelo crime cometido e mostrava todo o seu poder para se reafirmar enquanto
soberano e impedir novas ocorrências. O que, de certa forma, foi tomando a
forma inversa.
Na segunda parte do livro, Punição, é analisada a decadência dos
espetáculos supliciais e a busca de novas formas de punição. Ressalta Foucault
que os suplícios não foram abandonados por um movimento de humanização das
penas. Que buscava o respeito ao Ser Humano, mesmo sendo este um criminoso
atroz, e sim buscava, já que o método do suplício-espetáculo que devia representar,
simbolizar a força do soberano e fazer com que, ao ver o resultado de um crime,
ou seja, o castigo que receberá se este cometer, o indivíduo pense muitas vezes
antes de querer cometer um ato considerado criminoso, uma nova e mais precisa
(eficaz) forma de punição, de controle.
Os
reformadores sugeriam diversas e novas formas de punir. Condenavam o espetáculo,
reforçavam a necessidade de punições equivalentes ao crime cometido. Queriam a
autonomia legislativa, ou seja, o fim da interferência soberana do rei. Criaram
castigos utópicos, para cada tipo de crime (estes nunca chegaram a ser utilizados).
Agora um indivíduo só seria culpado se fosse possível comprovar o crime, com base
em provas reais e concretas. Foi o fim dos julgamentos secretos e o aparecimento
de investigações que buscavam provas que comprovassem o crime.
As penas passaram
a ser não mais um símbolo, como o era nos suplícios, mas uma representação de
como um ato, julgado errado, seria punido.
É criada, neste período, toda uma nova arte de punir, onde surge toda uma
técnica de representação, pois, segundo o autor, só teria efeito, a punição, se
estivesse inscrita em uma mecânica natural. Deveria ser natural para as pessoas
que, se cometessem determinado ato considerado errado, seriam punidas de
determinada forma. Acabaram-se assim as
revoltas contra as arbitrariedades punitivas.
Agora o crime
não feria mais a pessoa do rei, mas toda a sociedade (baseada no contrato) e
esta achava natural a punição do crime, como nos diz Foucault. O ato de ser
punido passa a ser natural. Não é mais o soberano, o magistrado que pune, mas o
crime que é punido; mais do que o indivíduo criminoso, é o crime que é punido.
Sendo, agora, natural que o seja.
A terceira parte do livro, Disciplina, é a
mais interessante, pois, o autor, fala sobre o saber disciplinar e como este
promoveu um grande avanço nas técnicas de controle e de poder, a partir de
meados do século XVIII.
Nesta
nova micro-física do poder, usando termos de Foucault, o indivíduo passa a ser
o objeto e o objetivo do chamado poder disciplinar. Meio e resultado da
disciplina é agora a multidão, esta grande “massa confusa e disforme”.
Foucault, nesta
parte do livro, faz um estudo sobre a formação dos chamados “corpos dóceis”, ou
corpos normalizados. Estuda e estabelece uma relação entre a formação da
disciplina dos soldados nos quartéis, dos operários nas fábricas, dos
estudantes nas escolas, dos hospitais, dos loucos, vagabundos, idosos em suas
respectivas casas de “correção“, dos criminosos nas prisões e etc. O autor
mostra que o poder, a técnica disciplinar estão presentes em todos os casos citados.
E procura mostrar, explicar a origem deste novo saber a respeito do Homem, do
indivíduo, indivíduos, dessa minuciosa e detalhada técnica disciplinar [2].
Esta nova técnica de poder, a disciplina,
não surgiu assim do nada e nem teve um criador ou uma instituição que a tivesse
criado e organizado. Ela, possivelmente, teve sua origem no período da peste
negra, quando ruas, bairros, cidades infectadas eram fechadas, ou seja, ficavam
em quarentena.
Eram feitos,
nestas regiões em estado de quarentena, estudos, para usar os termos de
Foucault, exames. Exames estes que analisavam, comparavam, estabeleciam
gráficos, tabelas, relações entre os indivíduos e etc. Foi a partir daí que,
segundo o autor, surgiram as chamadas ciências do homem, pois estes exames,
estas observações propiciaram a construção de um conhecimento sobre o homem. Um
conhecimento que foi se aprimorando ao longo do tempo.
A disciplina
era, entre outras coisas, composta pela divisão do tempo, dos espaços, das
atividades a serem feitas e etc. A utilização do relógio (nas fábricas, nas
escolas...) e a arquitetura foram fundamentais para o desenvolvimento deste
novo saber.
Era, enfim, toda
uma técnica que visava dividir o indivíduo em grupos, para, desta forma, se
obter um melhor estudo, entendimento e controle sobre o mesmo.
Depois estes exames, que haviam surgido com o trabalho dos médicos, foram instalando-se
nas escolas (provas, testes), nas fábricas (quem faz mais e melhor em menos
tempo e etc.), no exército, hospitais e assim por diante. Devido a estas novas
ciências sobre o homem, que se desenvolviam, foram formadas novas profissões,
novos especialistas como, por exemplo, os psicólogos, psicanalistas. E este
saber médico foi se expandindo em diversas áreas. Agora, um criminoso podia ser
absolvido, de culpa ou prisão, por motivos psicológicos e ou sociais (e este
era, depois, enviado às casas de correção recém-criadas). A sociedade, o modo
de ser da sociedade passou a ser, muitas vezes, o culpado pelo mau caminho
tomado por um indivíduo.
Nesta
parte do livro, o autor também fala sobre o Panóptico, o “olho do poder“. O
Panóptico, criado por Benthan no século XVIII, é considerado, pelo autor, como
a expressão máxima do poder disciplinar. Este é um tipo de construção (que
serve para prisões, escolas, quartéis e etc.) de formato circular ou
semicircular, com uma janela que dá para o lado de fora do edifício e uma para
o centro (a luz atravessa a cela por inteiro), onde se localiza uma torre. Nesta
torre, o vigia (que pode ser apenas um individuo) pode observar toda a prisão
sem ser visto.
Com este método,
o prisioneiro mantém a disciplina, pois pode estar sendo observado a qualquer
momento.
Na quarta e ultima parte do livro, Prisão, Foucault discorre, como o
título já diz, sobe a prisão, bem como suas técnicas e funções.
É importante
notar como a privação de liberdade se tornou o principal método de punição; e
como a prisão se tornou uma instituição complexa, produtora de um saber
especial sobre o sujeito independente da legislação, mas acompanhado pelo saber
médico, com base no exame (já explicado anteriormente).
Um ponto importantíssimo é o capítulo em que o autor fala sobre a
transformação do criminoso
Com
este livro, o filósofo francês Michel Foucault faz um estudo, ao contrário do
que diz a contra-capa da presente edição, não da história da prisão em si, mas
sobre a formação, o desenvolvimento de um saber sobre o indivíduo. Saber
proporcionado pela disciplina, com todas as suas micro-físicas, com todas as
suas minuciosas técnicas de controle. Controle este que se esconde parecendo
natural, normal. A disciplina é uma nova forma de poder que procura normalizar
toda a sociedade. O que mantém certa ordem na sociedade, segundo o autor, é a
disciplina já historicamente internalizada pelos indivíduos. O autor faz o uso,
ao longo de toda a obra, de documentos (discursos, documentos criminais e etc.)
para comprovar sua tese.
Outro
ponto interessante é que Foucault está sempre indicando temas que deveriam ser
estudados, temas aos quais os historiadores deveriam prestar mais atenção.
‘Vigiar e Punir’ faz um estudo sobre a
construção, a formação de um saber sobre o Homem, um saber que visa
disciplinar, homogeneizar toda a sociedade para, desta forma, melhor controlá-la,
sem que esta o perceba. Deixa bem claro, o autor, que não há uma fonte única
que detém este poder, pois este está espalhado, está presente em todos os
segmentos da sociedade e é exercido por todos, sobre todos e em si mesmos.
Michel Foucault é considerado um estudioso estruturalista, pois seu foco
esta sobre os saberes formados e não sobre os indivíduos em si. Estes só
aparecem, em seus estudos, como objeto e objetivo destes novos saberes que,
junto com as instituições, são transformados em busca da melhor maneira de
manter a sociedade em ordem.
[1] Um
exemplo utilizado pelo autor; é o trecho de um documento citado na página 51; a
fonte é citada nas notas. O trecho fala sobre o assassinato de um pastor pelo
senhor feudal da região.
“Os camponeses furiosos,
porque eram extremamente ligados ao seu pastor, pareceram primeiro dispostos a
ir aos últimos excessos contra seu senhor, cujo castelo ameaçaram incendiar...
Todo mundo reclamava com razão contra a indulgência do ministério que retirava
à justiça os meios de punir um crime tão abominável.”
[2]
Este exemplo é utilizado pelo autor; é um trecho de um documento citado na
página 120; a fonte é citada nas notas. Trecho de uma fala do Marechal de Saxe
“Aqueles que cuidam dos detalhes muitas vezes parecem espíritos tacanhos,
entretanto esta parte é essencial, porque ela é o fundamento, e é impossível
levantar qualquer edifício ou estabelecer qualquer método sem ter os
princípios. Não basta ter o gosto pela arquitetura. É preciso conhecer a arte
de talhar as pedras”.