Sobre ´Vigiar e Punir', Foucault (2008)

 

 O livro ‘Vigiar e Punir’ (‘Surveiller et punir‘) foi escrito pelo filósofo francês Michel Foucault (1926–84) e publicado em 1975. A presente edição, lançada pela Editora Vozes, é a 34º edição (brasileira) e possui 262 páginas.  

            Foucault é um pensador epistemológico, pois procura, não só neste livro, mas em toda a sua obra, descobrir, estudar a formação, o desenvolvimento dos saberes sobre o Homem. Saberes estes, que tem como função última controlar, normalizar a sociedade para melhor controlá-la, ou seja, para mantê-la em pleno funcionamento. Foucault faz uma história da formação (em um período de longa duração) de um saber, que cresce e se transforma em busca da melhor forma, da maneira mais eficaz de controlar a sociedade até ao mais simples indivíduo. Podemos ver, ao longo da obra, que este poder, criador de um saber, de um saber que, por sua vez, cria uma individualidade do indivíduo dentro da sociedade, para, desta forma, melhor entendê-lo, vigiá-lo e controlá-lo não é exercido por um único sujeito ou uma única instituição; é, na verdade, exercido por todos, sobre todos e sobre si mesmos. É uma micro-física do poder que vai se aprimorando ao passar do tempo e se espalha por toda malha social.

            A obra esta dividida em quatro partes:

A primeira parte, denominada Suplício, por sua vez, está dividida em dois capítulos. Sendo o primeiro O corpo dos Condenados e o segundo A ostentação dos Suplícios.

A segunda parte, denominada Punição, também esta dividida em dois capítulos. O primeiro possui o título A Punição Generalizada e o segundo A Mitigação da Penas. A terceira parte, denominada Disciplina esta dividida em três capítulos. O primeiro tem por título Os Corpos Dóceis, o segundo Os Recursos Para o Bom Adestramento e o terceiro O Panoptismo.

A quarta e última parte, denominada Prisão, está dividida em três capítulos. Sendo o primeiro denominado Instituições Completas e Austeras, o segundo Ilegalidade e Delinqüência e o terceiro O Carcerário. E ao final de cada parte estão as notas de rodapé.

Na primeira parte do livro, Suplício, o autor, Michel Foucault, nos fala, como o próprio título já diz, sobre o ritual dos suplícios. Ritual este em que as execuções eram tidas como um espetáculo, onde o soberano se vingava do criminoso que, ao cometer um crime, atacara não a sociedade, mas a própria pessoa do soberano. E este queria, como forma de exemplo a futuros crimes, mostrar todo o seu poder vingativo. Como nos diz Foucault, é a justa do soberano.

Mas, é claro, não devemos pensar que os suplícios eram a única forma de punição deste período (entre o século XVI e XVII). Existiam outras penas como, por exemplo, o banimento, o açoite, confissões públicas dos crimes, prisão, as galeras entre muitas outras. Os suplícios eram utilizados para determinados tipos de crimes, os mais graves onde, como vimos, o soberano sentia sua imagem atacada.

             Os rituais de suplício deveriam servir de exemplo para impedir que determinados crimes voltassem a acontecer. Eram organizados opulentos espetáculos e estes continham, entre outras coisas, a confissão e leitura das penas e dos crimes em público, acompanhadas de pedidos de perdão e de discursos aconselhando todos a não cometerem mais este tipo de crime. Lógico que, como nos diz Foucault, estes pedidos de perdão e confissões eram previamente obrigados pelos magistrados. Quanto mais cruel tivesse sido o ato criminoso maior seria a tortura (o suplício, o espetáculo) e a execução. Foram criadas diversas formas de torturas e de execução, desde a morte lenta à morte rápida (todas minuciosamente preparadas e executadas). É importante lembrar que muitas vezes o crime era relembrado na hora dos suplícios, ou seja, faziam, os carrascos, os executores, muitas vezes, com que os criminosos sentissem dobrado o crime que tinham cometido. 

Estes espetáculos supliciais tinham como objetivo, além de impedir que determinados crimes fossem novamente cometidos, criar uma reação de fúria, de desprezo, de ódio contra o criminoso, por parte da população.

            Podemos ver, então, que os suplícios destinavam-se mais à população do que aos próprios criminosos, pois o objetivo era reafirmar o poder do soberano, em sua justa, em sua vingança, impedindo, desta forma, a ocorrência de novos crimes.

Como nos diz Foucault, o soberano, neste período, tinha o poder de “fazer morrer e deixar viver”, ou seja, tinha o poder de ordenar à morte quem achasse que merecesse ou de impedir execuções já aprovadas, exigidas pelos magistrados ou pela população. O que foi gerando um descontentamento por parte dos magistrados, que sentiam seu poder judiciário fraco perante a arbitrariedade do poder soberano do rei.

As leis estavam abaixo do poder soberano do rei. Condenavam, os legisladores e magistrados, a arbitrariedade do poder soberano que os ultrapassava. Mas, como diz Foucault, o poder dos magistrados também era arbitrário. Existiam formas secretas (os magistrados faziam os interrogatórios secretamente utilizando diversas formas para obter as respostas necessárias, esperadas, procuradas e só depois anunciavam a sentença) de obter confissões, de inocentar ou culpar determinado indivíduo. Eram utilizadas diversas formas de tortura e interrogatório.

            Aos poucos foi percebido que estes suplícios, estes grandes espetáculos estavam gerando um efeito oposto ao esperado. Ao invés de o criminoso ser odiado, desprezado pela população, este passou a ser, muitas vezes, enaltecido por seus grandes feitos (feitos criminosos), por sua esperteza em driblar as leis e etc.

Surgiram, neste período, diversos panfletos contendo histórias que exaltavam os famosos bandidos e seus feitos, panfletos que antes continham as confissões, os pedidos de perdão e as súplicas do condenado.

Como nos diz Foucault, não devemos pensar que a população era passiva às decisões do rei ou dos magistrados quanto às condenações, torturas ou prisões.

O povo (se é que podemos utilizar essa expressão para um período antes do século XVIII) manifestava contra penas, prisões a que não concordava ou contra a leveza dos magistrados perante certos crimes (ou criticava a falta de punição a determinado crime ou indivíduo) [1]. Isso exemplifica também a diferença entre as classes, onde os mais pobres eram facilmente condenados enquanto os mais ricos escapavam às leis e às punições, destinadas às massas. Os grandiosos, silenciosos e sábios crimes passaram a fazer parte de um “jogo” das classes mais abastadas (o exemplo citado, na nota de rodapé número 1, também serve para exemplificar este ponto, pois o senhor que mandou matar o pastor não foi punido).

Nesta primeira parte, Foucault faz uma análise sobre como se dava a punição, sobre quem detinha o poder e sobre como funcionava este processo de punição, espetáculo, justa/ vingança do rei que se sentia pessoalmente ofendido pelo crime cometido e mostrava todo o seu poder para se reafirmar enquanto soberano e impedir novas ocorrências. O que, de certa forma, foi tomando a forma inversa.

Na segunda parte do livro, Punição, é analisada a decadência dos espetáculos supliciais e a busca de novas formas de punição. Ressalta Foucault que os suplícios não foram abandonados por um movimento de humanização das penas. Que buscava o respeito ao Ser Humano, mesmo sendo este um criminoso atroz, e sim buscava, já que o método do suplício-espetáculo que devia representar, simbolizar a força do soberano e fazer com que, ao ver o resultado de um crime, ou seja, o castigo que receberá se este cometer, o indivíduo pense muitas vezes antes de querer cometer um ato considerado criminoso, uma nova e mais precisa (eficaz) forma de punição, de controle.

            Os reformadores sugeriam diversas e novas formas de punir. Condenavam o espetáculo, reforçavam a necessidade de punições equivalentes ao crime cometido. Queriam a autonomia legislativa, ou seja, o fim da interferência soberana do rei. Criaram castigos utópicos, para cada tipo de crime (estes nunca chegaram a ser utilizados). Agora um indivíduo só seria culpado se fosse possível comprovar o crime, com base em provas reais e concretas. Foi o fim dos julgamentos secretos e o aparecimento de investigações que buscavam provas que comprovassem o crime.

As penas passaram a ser não mais um símbolo, como o era nos suplícios, mas uma representação de como um ato, julgado errado, seria punido. 

É criada, neste período, toda uma nova arte de punir, onde surge toda uma técnica de representação, pois, segundo o autor, só teria efeito, a punição, se estivesse inscrita em uma mecânica natural. Deveria ser natural para as pessoas que, se cometessem determinado ato considerado errado, seriam punidas de determinada forma.  Acabaram-se assim as revoltas contra as arbitrariedades punitivas.

Agora o crime não feria mais a pessoa do rei, mas toda a sociedade (baseada no contrato) e esta achava natural a punição do crime, como nos diz Foucault. O ato de ser punido passa a ser natural. Não é mais o soberano, o magistrado que pune, mas o crime que é punido; mais do que o indivíduo criminoso, é o crime que é punido. Sendo, agora, natural que o seja.

             A terceira parte do livro, Disciplina, é a mais interessante, pois, o autor, fala sobre o saber disciplinar e como este promoveu um grande avanço nas técnicas de controle e de poder, a partir de meados do século XVIII.

            Nesta nova micro-física do poder, usando termos de Foucault, o indivíduo passa a ser o objeto e o objetivo do chamado poder disciplinar. Meio e resultado da disciplina é agora a multidão, esta grande “massa confusa e disforme”.

Foucault, nesta parte do livro, faz um estudo sobre a formação dos chamados “corpos dóceis”, ou corpos normalizados. Estuda e estabelece uma relação entre a formação da disciplina dos soldados nos quartéis, dos operários nas fábricas, dos estudantes nas escolas, dos hospitais, dos loucos, vagabundos, idosos em suas respectivas casas de “correção“, dos criminosos nas prisões e etc. O autor mostra que o poder, a técnica disciplinar estão presentes em todos os casos citados. E procura mostrar, explicar a origem deste novo saber a respeito do Homem, do indivíduo, indivíduos, dessa minuciosa e detalhada técnica disciplinar [2].

     Esta nova técnica de poder, a disciplina, não surgiu assim do nada e nem teve um criador ou uma instituição que a tivesse criado e organizado. Ela, possivelmente, teve sua origem no período da peste negra, quando ruas, bairros, cidades infectadas eram fechadas, ou seja, ficavam em quarentena.

Eram feitos, nestas regiões em estado de quarentena, estudos, para usar os termos de Foucault, exames. Exames estes que analisavam, comparavam, estabeleciam gráficos, tabelas, relações entre os indivíduos e etc. Foi a partir daí que, segundo o autor, surgiram as chamadas ciências do homem, pois estes exames, estas observações propiciaram a construção de um conhecimento sobre o homem. Um conhecimento que foi se aprimorando ao longo do tempo.

A disciplina era, entre outras coisas, composta pela divisão do tempo, dos espaços, das atividades a serem feitas e etc. A utilização do relógio (nas fábricas, nas escolas...) e a arquitetura foram fundamentais para o desenvolvimento deste novo saber.

Era, enfim, toda uma técnica que visava dividir o indivíduo em grupos, para, desta forma, se obter um melhor estudo, entendimento e controle sobre o mesmo.

Depois estes exames, que haviam surgido com o trabalho dos médicos, foram instalando-se nas escolas (provas, testes), nas fábricas (quem faz mais e melhor em menos tempo e etc.), no exército, hospitais e assim por diante. Devido a estas novas ciências sobre o homem, que se desenvolviam, foram formadas novas profissões, novos especialistas como, por exemplo, os psicólogos, psicanalistas. E este saber médico foi se expandindo em diversas áreas. Agora, um criminoso podia ser absolvido, de culpa ou prisão, por motivos psicológicos e ou sociais (e este era, depois, enviado às casas de correção recém-criadas). A sociedade, o modo de ser da sociedade passou a ser, muitas vezes, o culpado pelo mau caminho tomado por um indivíduo.

            Nesta parte do livro, o autor também fala sobre o Panóptico, o “olho do poder“. O Panóptico, criado por Benthan no século XVIII, é considerado, pelo autor, como a expressão máxima do poder disciplinar. Este é um tipo de construção (que serve para prisões, escolas, quartéis e etc.) de formato circular ou semicircular, com uma janela que dá para o lado de fora do edifício e uma para o centro (a luz atravessa a cela por inteiro), onde se localiza uma torre. Nesta torre, o vigia (que pode ser apenas um individuo) pode observar toda a prisão sem ser visto.

Com este método, o prisioneiro mantém a disciplina, pois pode estar sendo observado a qualquer momento.

Na quarta e ultima parte do livro, Prisão, Foucault discorre, como o título já diz, sobe a prisão, bem como suas técnicas e funções.

É importante notar como a privação de liberdade se tornou o principal método de punição; e como a prisão se tornou uma instituição complexa, produtora de um saber especial sobre o sujeito independente da legislação, mas acompanhado pelo saber médico, com base no exame (já explicado anteriormente).

Um ponto importantíssimo é o capítulo em que o autor fala sobre a transformação do criminoso em delinqüente. Este, após ter passado por todos os processos de recuperação proporcionados pela instituição carcerária, pode voltar à sociedade, ou seja, o criminoso, ao sair da prisão, se torna um delinqüente, isto quer dizer, segundo o autor, um criminoso que pode ser mais facilmente controlado. O delinqüente é um criminoso “regenerado” que só cometerá, a partir daí, pequenos delitos e pode voltar à prisão no mínimo sinal de reincidência.

            Com este livro, o filósofo francês Michel Foucault faz um estudo, ao contrário do que diz a contra-capa da presente edição, não da história da prisão em si, mas sobre a formação, o desenvolvimento de um saber sobre o indivíduo. Saber proporcionado pela disciplina, com todas as suas micro-físicas, com todas as suas minuciosas técnicas de controle. Controle este que se esconde parecendo natural, normal. A disciplina é uma nova forma de poder que procura normalizar toda a sociedade. O que mantém certa ordem na sociedade, segundo o autor, é a disciplina já historicamente internalizada pelos indivíduos. O autor faz o uso, ao longo de toda a obra, de documentos (discursos, documentos criminais e etc.) para comprovar sua tese.

            Outro ponto interessante é que Foucault está sempre indicando temas que deveriam ser estudados, temas aos quais os historiadores deveriam prestar mais atenção.

             ‘Vigiar e Punir’ faz um estudo sobre a construção, a formação de um saber sobre o Homem, um saber que visa disciplinar, homogeneizar toda a sociedade para, desta forma, melhor controlá-la, sem que esta o perceba. Deixa bem claro, o autor, que não há uma fonte única que detém este poder, pois este está espalhado, está presente em todos os segmentos da sociedade e é exercido por todos, sobre todos e em si mesmos.

Michel Foucault é considerado um estudioso estruturalista, pois seu foco esta sobre os saberes formados e não sobre os indivíduos em si. Estes só aparecem, em seus estudos, como objeto e objetivo destes novos saberes que, junto com as instituições, são transformados em busca da melhor maneira de manter a sociedade em ordem.



[1] Um exemplo utilizado pelo autor; é o trecho de um documento citado na página 51; a fonte é citada nas notas. O trecho fala sobre o assassinato de um pastor pelo senhor feudal da região.

“Os camponeses furiosos, porque eram extremamente ligados ao seu pastor, pareceram primeiro dispostos a ir aos últimos excessos contra seu senhor, cujo castelo ameaçaram incendiar... Todo mundo reclamava com razão contra a indulgência do ministério que retirava à justiça os meios de punir um crime tão abominável.”

[2] Este exemplo é utilizado pelo autor; é um trecho de um documento citado na página 120; a fonte é citada nas notas. Trecho de uma fala do Marechal de Saxe “Aqueles que cuidam dos detalhes muitas vezes parecem espíritos tacanhos, entretanto esta parte é essencial, porque ela é o fundamento, e é impossível levantar qualquer edifício ou estabelecer qualquer método sem ter os princípios. Não basta ter o gosto pela arquitetura. É preciso conhecer a arte de talhar as pedras”.

 

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